Talvez seja inveja de escritor – esse ser obrigado a se expressar na tela em branco –, mas sempre tive uma predileção, nada velada, pelo quadro em detrimento às outras expressões das artes visuais. Grandes escultores, como Henry Moore ou Richter, constantemente colocam isso em xeque. Calder e Kentridge outro tanto. Além da inveja, devo confessar, tenho certa dificuldade em interessar-me por obras justificadas por interpretações teóricas. É um mundo não dos artistas, mas sim dos curadores, e as artes plásticas, com exceções cada vez mais raras, vêm sendo tomadas por mercadores pouco interessados na difícil tarefa de mediar as expectativas de artistas e público. É uma lástima, mas num tempo em que as grandes fortunas do mundo estocam obras de arte como soja em galpões de Luxemburgo, a grana com seus dentinhos afiados joga no lixo as reputações.
Toda essa longa e labiríntica introdução para falar da exposição da japonesa Yayoi Kusama, em cartaz, gratuitamente, no Instituto Tomie Othake, em São Paulo.
Pra começar, este ser de humor vacilante que atende por José Godoy fez sua visita prostrado pelo recente almoço. Ou seja, sem lá muita paciência para as aventuras que Kusama propõe. Depois de cinco minutos duros, em que sensores vindos do sofá mais próximo atingiam minha vontade com suas ondas, resolvi tomar um café e fazer o mínimo que se espera de alguém que mantém um blog chamado “A arte de andar por aí…”.
Não poderia ter feito melhor opção.
Para quem nunca ouviu falar de Kusama, um breve resumo.
Sofrendo desde pequena de sérios distúrbios psicológicos, começou como pintora, migrou para a América, foi da turma do Warhol, participou de alguns dos happenings mais alucinados dos anos 1960. Lutou pelos direitos civis, celebrou o primeiro casamento gay da cidade de Nova York, retornou para o Japão, onde vive desde 1977, por vontade própria, numa instituição psiquiátrica.
Por mais que sua obra pictórica, que abre e fecha a mostra, fosse o suficiente para chamar minha atenção (a produção recente da artista de 85 anos é impressionante), nada se compara ao efeito libertário de suas instalações. Pois se há uma coisa que o quadro, confinado em sua imobilidade, não nos pode ofertar é a interpenetração entre corpo e objeto artístico (concretos e cinéticos aplaudem). O que Kusama nos oferta, com a generosidade de quem explora o mundo movediço do inconsciente há tantos anos, é acessar, por meios de sua obra, recônditos de nossa personalidade que solapamos diariamente com nossa dose patológica de racionalidade. Por meio de seus pontos coloridos; fotos, filmes ou histórias de suas performances, e, principalmente, pela magnífica “Filled with brilliance of life”, que, por lei, todo ser humano deveria ter direito a visitar, a obra de Kusama a todo momento nos convence de que por muitas vezes nossos velhos hábitos nos impedem de viver grandes aventuras.
29 de maio de 2014
A Coluna – Viagem ao fundo da mente
Anúncios
2 junho, 2014 at 16:26
Lendo seu comentário, lembrei-me de Nise Silveira e do Museu do Inconsciente.Tudo seria mais fácil se aceitássemos os diferentes. Por enquanto, sigo curtindo seu senso humor.
3 junho, 2014 at 18:59
Oi, Teresa, a associação é imediata, o trabalho da Nise, o Bispo do Rosário. Quem são os loucos e os sãos? O quanto de coragem é preciso para se questionar a realidade?
abs
18 dezembro, 2014 at 18:59
[…] ensaia agora colocar a cabeça para fora da água), a grande mostra do ano no país foi a japonesa Yayoi Kusama no Tomie Othake, disparado o melhor espaço expositivo de São Paulo nos últimos […]