Comecemos com Henrique VIII. Com os casamentos de Henrique VIII. Com o rompimento com o Vaticano para se casar com Ana Bolena. E então avancemos para o mundo após a sua morte, o mundo de seus herdeiros. É esse o mundo em que Shakespeare nasce em 1564. A Inglaterra protestante de Elizabeth I, a filha desse casamento que divide a Europa ao meio. Ao norte, isola-se sua prima católica, Mary Stuart na Escócia. Por todos os lados – falamos aqui de uma ilha – o fantasma da Armada Espanhola, movida pelo combustível da Inquisição. Tempos de medo no sangue, e emoções à flor da pele. Perfeitos para o surgimento do maior dramaturgo de todos os tempos.
O negócio do teatro nessa época era disputado. Dezenas de companhias lutando pelo tempo e o dinheiro de uma plateia muito interessada em tragédias e comédias encenadas ao vivo. Uma Londres de 200 mil habitantes, em que companhias como os Homens do Lorde Camerlengo de Shakespeare atraíam de 1500 a 2000 pagantes por noite. Passar o chapéu após o espetáculo deixa de ser uma boa estratégia. Cria-se a bilheteria. O negócio floresce, apresentações na corte são contratadas. Apresentações para o rei, que agora é Jaime I (ou se preferir James I, ou James VI da Escócia, todos o mesmo homem). Elizabeth está morta, e, sem herdeiros, os Tudor são postos de lado. O rei é escocês, filho da prima banida e então assassinada de Elizabeth. Um homem assombrado por traições e mortes próximas.
Provavelmente por volta de 1606, Os homens do rei, a nova companhia de Shakespeare, preparam uma apresentação para Jaime I, seu patrono. O dramaturgo precisa ser rápido (daí talvez a extensão reduzida) e atrair a atenção de um monarca cujo relatos recentes descrevem como entediado com as últimas apresentações.
Quais são os interesses mais profundos do rei? Como atraí-lo para aquela encenação?
Bruxas, vaticínios, mensagens cifradas assombram e interessam Jaime. É por aí que Shakespeare irá chegar ao seu coração. É essa a chave para a escrita de “Macbeth”.
A história do general ambicioso que assassina o rei para usurpar o trono, Shakespeare retira das crônicas históricas. O gênio se dá a ver nas escolhas das homenagens e na dimensão emocional. Banquo, o amigo ético de Macbeth que também acaba assassinado por se opor ao complô do novo rei, é um ancestral remoto de Jaime – um ancestral que segundo as fontes históricas é bem menos magnânimo do que o personagem shakespeariano. A punição pela culpa aos que traem, aquele que usurpa, serve como conforto ao rei assombrado.
O fato de que “Macbeth” seja muito mais do que uma peça para agradar um patrono, que seja uma das mais profundas investigações já feitas sobre ambição e culpa, entra para a conta do que ninguém consegue explicar plenamente: como um ator da Londres elizabetana pôde ser capaz de dar conta tão profundamente da alma humana, e ao mesmo tempo entreter as plateias mais diversas ao longo de tantos séculos.
“Macbeth” foi tema do Clube do Livro de hoje.
Deixe um comentário